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Formar médicos ou fabricar diplomas? Um chamado à responsabilidade ética na educação médica

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“O que me preocupa não é o grito grito dos mausmas o silêncio dos bons”

Martin Luther King Jr.

Nos últimos dias, li com atenção o artigo publicado na Folha de S. Paulo, assinado por representantes de importantes entidades médicas. O título é um apelo por si só: “Formação médica responsável, para o bem de todos”. Confesso que minha reação foi imediata: um suspiro profundo, não de cansaço, mas de urgência. Porque há tempos venho observando, como médica e professora, que estamos atravessando uma verdadeira crise de sentido na formação médica brasileira.

Sim, é disso que se trata. Não é apenas uma questão de grade curricular, de infraestrutura ou de avaliações. É uma questão ética. É sobre o que estamos entregando à sociedade quando formamos – ou titulamos – um médico.

Vivemos tempos em que se acredita que o simples aumento no número de escolas médicas seria suficiente para corrigir as desigualdades no acesso à saúde. É como se bastasse colocar mais “brancos jalecos” nas ruas para que o SUS funcione, os postos sejam preenchidos, e o povo tenha acesso digno à saúde. Mas a realidade é bem mais complexa e dolorosa.

Formar um médico não é como montar uma linha de produção. É um processo lento, cuidadoso, que exige imersão clínica, reflexão ética, contato humano, presença de mestres – não apenas professores – e sobretudo exigência. Exigência não como punição, mas como compromisso com a vida que será confiada a essas mãos em formação.

O artigo da Folha toca exatamente nesse ponto quando defende que haja avaliações durante e ao fim da graduação, não como um entrave burocrático, mas como um filtro necessário diante de uma formação que, em muitos casos, já nasce deficitária. E eu acrescento: avaliação deve ser também autoavaliação constante do projeto pedagógico das instituições, uma vez que muitas das quais tratam o ensino como um negócio, não como uma missão.

Como psicanalista, escuto semanalmente jovens médicos, recém-formados, tomados por angústias que não são apenas pessoais, mas estruturais. Estão inseguros, exaustos, emocionalmente sobrecarregados e sem saber como enfrentar o real da prática médica. Sentem-se despreparados – não porque lhes falte inteligência ou vocação, mas porque lhes foi negada a possibilidade de um verdadeiro encontro formador ao longo da faculdade.

Esses jovens chegam aos consultórios, hospitais e emergências não com manuais abertos, mas com o corações batendo rápido e as mãos trêmulas, porque nunca puderam errar no espaço seguro da formação. E agora, o erro pode custar vidas.

É por isso que a frase de Martin Luther King ressoa tão fortemente aqui: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Temos permanecido silenciosos diante da deterioração progressiva do ensino médico. Silenciosos por medo, por acomodação, ou por não saber exatamente como agir. Mas o preço do silêncio dos bons, nesse caso, é altíssimo – e se paga em sofrimento humano.

A proposta de avaliações externas – durante o curso e ao final da formação médica – foi recebida com críticas por alguns setores. Fala-se em “controle”, em “desconfiança”, em “burocratização”. Mas talvez seja hora de pararmos de proteger sistemas frágeis e começarmos a proteger vidas.

Não se trata de um ato punitivo. Trata-se de responsabilidade pública. Um médico mal formado não é apenas um risco individual – é um problema sistêmico, que se desdobra em diagnósticos errados, tratamentos ineficazes, prescrições perigosas, vínculos desfeitos e até mortes evitáveis.

É preciso dizer com todas as letras: nem todo diploma forma um médico. O diploma, por si só, é uma certificação administrativa. A formação é um processo existencial, prático e simbólico. E se ele for comprometido por faculdades improvisadas, por currículos que negligenciam a escuta, a ética e a clínica real, teremos profissionais perdidos – e pacientes ainda mais desassistidos.

Como professora do curso de Medicina há décadas, e como fundadora de uma instituição psicanalítica que acompanha há mais de 35 anos a formação de profissionais da saúde mental, sei que transformar a formação médica requer mais do que provas. Requer reencantar o ensino, reestruturar os vínculos entre teoria e prática, fortalecer a presença do educador como referência viva e não como burocrata da aula gravada.

Precisamos de espaços formadores de pensamento crítico, não de repetidores de condutas. O médico que o Brasil precisa não é o que acerta questões de múltipla escolha, mas o que sabe perguntar, escutar, duvidar e refletir.

É nesse sentido que o artigo da Folha é tão oportuno: ele nos chama à construção de um modelo formativo integrado com a realidade dos sistemas de saúde e com as complexidades humanas. Não se trata de formar técnicos, mas profissionais éticos, reflexivos e emocionalmente preparados para lidar com a dor do outro.

O alerta de Martin Luther King nos convida a sair da inércia. Não podemos mais assistir calados ao avanço da precarização na formação médica. Silenciar diante disso é ser cúmplice. É legitimar que interesses mercantis falem mais alto do que o compromisso com a saúde pública e com a vida humana.

Talvez você, leitor, não seja médico. Talvez apenas acompanhe de longe essas discussões, como quem lê notícias sobre um mundo distante. Mas a verdade é que essa crise lhe afeta diretamente. Porque um dia, mais cedo ou mais tarde, todos seremos pacientes. Todos colocaremos nossa saúde – ou a de alguém que amamos – nas mãos de um profissional que foi formado dentro desse sistema.

E o que vamos encontrar? Um médico com escuta ética, visão clínica e presença humana? Ou um técnico inseguro, acelerado e emocionalmente desamparado? A resposta depende das escolhas que fizermos agora. E também da coragem que tivermos para romper o silêncio.

Fonte: artigo “Formação médica responsável, para o bem de todos”, publicado na Folha de S. Paulo em 16 de julho de 2025.

Para saber detalhes sobre esse estudo, acesse o artigo completo clicando aqui!

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