“De tanto salvar os outros, esquecemo-nos de salvar a nós mesmos”
Fernando Pessoa
O estudo divulgado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CremeSP – traz dados que nos obrigam a um mergulho doloroso: médicos vivem menos que a população em geral.
Segundo o levantamento, homens da profissão vivem em média três anos a menos do que os demais homens brasileiros – 69 contra 72 anos. Mas o que mais impressiona é o dado referente às mulheres: as médicas vivem, em média, 20 anos a menos do que as mulheres da população geral – 59 contra 79 anos. Isso: 20 anos a menos. Uma vida inteira sacrificada.
Os números não são frios – eles carregam histórias de vidas interrompidas. O CremeSP aponta as principais causas: acidentes provocados pelo cansaço extremo, depressão que leva ao suicídio, doenças cardiovasculares associadas ao estresse, às poucas horas de sono e ao sedentarismo que a rotina impõe. Em outras palavras, o médico morre daquilo que tenta combater nos seus pacientes.
O paradoxo é cruel: cuidamos dos outros, mas não cuidamos de nós mesmos. A epígrafe de Fernando Pessoa ressoa aqui como um espelho incômodo: “De tanto salvar os outros, esquecemo-nos de salvar a nós mesmos”. Somos treinados para socorrer, atender, aliviar – mas muitas vezes nos negamos o direito ao descanso, ao cuidado, ao reconhecimento da própria vulnerabilidade.
No caso das mulheres médicas, a disparidade se torna ainda mais gritante. Se a Medicina já cobra caro de todos, das médicas exige um tributo quase mortal. Entre plantões, jornadas extensas e as responsabilidades da vida doméstica e materna, a conta chega de forma impiedosa: 20 anos a menos de vida. Essa estatística não é apenas médica. É também social. Ela denuncia o peso ainda desigual da condição feminina no exercício da profissão.
É curioso perceber como naturalizamos essa tragédia silenciosa. Se qualquer outro grupo populacional apresentasse tamanha diferença de expectativa de vida, chamaríamos isso de emergência de saúde pública. Mas como se trata dos médicos, permanece um silêncio quase cúmplice. Talvez porque se espere de nós a resistência infinita, como se estivéssemos sempre de prontidão, imunes ao desgaste.
Mas não. Não estamos imunes. O médico adoece, o médico sofre, o médico morre. E quando não reconhecemos isso, pagamos todos: pacientes, famílias e a própria sociedade, que perde não apenas profissionais, mas seres humanos que dedicaram a vida ao cuidado.
A Medicina precisa rever sua cultura. É urgente romper com a lógica do heroísmo, que glorifica jornadas intermináveis e transforma o esgotamento em medalha de honra. Não há nenhuma honra em morrer 20 anos antes. O verdadeiro compromisso ético começa em admitir que o médico, antes de tudo, é humano, e que tem o direito de ser cuidado.
Talvez o maior ensinamento desse estudo seja o de nos devolver a humildade. Somos mortais. E, como escreveu Pessoa, esquecemo-nos de salvar a nós mesmos. O desafio agora é transformar essa lembrança em prática: criar condições para que a Medicina seja espaço de vida, não de morte antecipada.
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