“Se for sua hora, aceite. Se estiver pesado demais, permita-se partir. É muito doloroso viver em constante luta”
Gilberto Gil
Algumas palavras atravessam a pele e nos alcançam onde a ciência não toca. A fala de Gilberto Gil, dirigida à filha Preta Gil, gravemente enferma, ecoou pelo Brasil com a força de quem ousa amar também no limite. Foi recebida por muitos com espanto, por outros com lágrimas. Como pode um pai dizer isso à filha? Como permitir, com serenidade, que ela deixe de lutar?
Mas há uma sabedoria profunda nessa permissão. Uma sabedoria que muitas vezes escapa à Medicina e que, por isso mesmo, deve ser trazida à tona, sobretudo no espaço formativo dos futuros médicos, onde ensino há décadas. Precisamos conversar sobre o fim da vida. Precisamos conversar sobre a humanização da morte.
A Medicina nos ensinou a resistir. A intervir. A salvar. Mas não nos ensinou a escutar o cansaço. Nem sempre estamos preparados para reconhecer quando a luta já não cura, só prolonga a dor. Há momentos em que insistir é um gesto de violência, ainda que travestido de cuidado.
No contexto hospitalar, isso se torna ainda mais evidente. Aparelhos, alarmes, fios. O corpo doente passa a ser um campo de batalha. E o sujeito que ali habita? Muitas vezes, vai desaparecendo atrás das condutas, dos exames, dos protocolos. É por isso que defendo, e ensino, que o cuidado precisa ser ético, sim, mas também sensível. Técnico, sim, mas também amoroso.
Gilberto Gil não abandonou sua filha. Ao contrário, ele a acolheu no momento mais árduo. Disse a ela que estava tudo bem descansar. Que se fosse a hora, ela podia soltar a armadura. Disse, com coragem, que viver em constante luta também pode ser uma prisão. E isso, acreditem, é amor em sua forma mais elevada.
Preta Gil escolheu seguir lutando. E foi belo. Foi digno. Foi dela. Porque o ponto mais delicado desta conversa é esse: a escolha. A decisão deve ser do paciente. Não da família, não dos médicos, não do sistema. O papel do profissional de saúde, nesse momento, é garantir que a escolha seja possível e respeitada.
É por isso que tenho defendido, inclusive nos espaços institucionais, que a morte, quando inevitável, seja vivida com dignidade. Preferencialmente em casa, se for o desejo do paciente. Entre vozes conhecidas, mãos que amam, cheiros que embalam. Longe da rigidez do hospital. A Medicina precisa devolver à morte sua humanidade, e à vida, seu mistério.
Falar disso com os alunos de Medicina não é fácil. Há medo, resistência, desconforto. Mas também há um brilho nos olhos quando percebem que cuidar não é apenas curar. É estar. É escutar. É sustentar o outro quando ele já não pode mais. E, se necessário, é dizer com o coração aberto: “se estiver pesado demais, permita-se partir”.
Gilberto Gil, com sua arte e sua dor, nos ensinou mais do que muitos tratados acadêmicos. Que amar é, às vezes, soltar. E que há beleza, e ética, no gesto de permitir que alguém descanse, sem culpa e sem vergonha, quando a luta já deixou de ser escolha e passou a ser suplício. A Medicina que eu pratico, ensino e sonho é essa: aquela que cura quando pode, que cuida sempre, e que sabe, com humildade, a hora de deixar ir.
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