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Dor disfarçada de boneca: o sintoma que a sociedade zombou

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“A civilização éem grande parteresultado da repressão das pulsões” Sigmund Freud

Caro leitor. Tenho me sentido profundamente impactada com as recentes reportagens sobre os chamados bebês reborn. Para quem ainda não conhece, trata-se de bonecas hiper-realistas produzidas com técnicas artísticas sofisticadas que buscam reproduzir com máxima fidelidade a aparência de um bebê real, incluindo detalhes como textura da pele, veias, marcas de nascença, peso, movimentos simulados de sucção, urina e, nas versões mais avançadas, até respiração e batimentos cardíacos.

Esses bonecos são moldados com materiais como silicone especial, recebem pintura manual em camadas para atingir tons de pele realistas, têm cabelos implantados fio a fio, articulações móveis e até sistemas de aquecimento e fragrância típica de recém-nascido. Seu peso, geralmente entre 2 kg e 3,5 kg, confere verossimilhança ao serem segurados no colo. São, de fato, verdadeiras obras de arte.

Detalhe: são tratados como filhos por algumas mulheres. Recebem nomes, roupas, alimentação simulada e cuidados diários. Para alguns, representam uma forma de lidar com o luto, a infertilidade ou traumas emocionais. Em contextos terapêuticos adequados, podem até funcionar como objetos transicionais, auxiliando na elaboração de perdas e na reorganização emocional.

Mas um episódio recente viralizou e, mais do que o gesto em si, me inquietou a reação social e política. Uma jovem mineira levou um bebê reborn a um hospital público simulando uma emergência. A equipe médica prestou atendimento real, sem perceber tratar-se de um boneco.

O que seria, no máximo, um caso digno de análise clínica, ganhou contornos de escárnio público e, pior, gerou um projeto de lei para proibir o atendimento de bonecos no SUS. Uma resposta caricata a um sofrimento real.

Mais do que criticar o comportamento da jovem, deveríamos nos perguntar: o que está tão ausente na vida dessa mulher que a presença simbólica de um boneco a levou ao pronto-socorro? O que está tão ausente na política brasileira que um deputado acredita que o melhor caminho seja proibir o que deveria ser escutado?

Para muitas mulheres, especialmente aquelas que passaram por perdas gestacionais, infertilidade, abandono ou isolamento afetivo, esses bonecos funcionam como objetos transicionais tardios. Na psicanálise, objetos transicionais são recursos que promovem regulação psíquica e alívio simbólico em momentos de dor ou desorganização. O bebê reborn pode representar uma tentativa inconsciente de reparação, uma substituição simbólica do que foi perdido, do que nunca se teve ou jamais se pôde elaborar.

Mas quando o apego a esses objetos substitui o real, quando a fantasia se impõe à vida concreta e às relações humanas, temos um sinal de sofrimento psíquico importante. E isso exige escuta qualificada, não zombaria pública ou legislação punitiva. Exige empatia, acolhimento, psicanálise, política de saúde mental.

Estamos diante de um fenômeno que revela mais sobre nós do que sobre elas. A romantização desses comportamentos, amplificada por redes sociais e pelo mercado da dor, cria uma estética do afeto onde a ausência é camuflada pela performance. E, nessa lógica, o bebê de silicone é mais suportável que o luto, a solidão ou a depressão que ele representa.

É fundamental que, diante desse fenômeno, a sociedade se pergunte: estamos oferecendo espaços reais de cuidado, ou apenas substituindo a escuta por objetos que simulam presença? A dor precisa ser nomeada. Não decorada. Não plastificada. Não romantizada.

Até porque o vazio não se resolve. Ele apenas muda de forma, de cor, de nome. O buraco continua lá. E há uma diferença brutal entre habitá-lo com consciência… ou decorá-lo com silicone perfumado.

O mais assustador, no entanto, não é o boneco. É a crítica ou escárnio social diante da dor. É um projeto de lei que tenta silenciar um sintoma ao invés de escutar sua origem. É a política pública que legisla sobre a cena e ignora o grito silencioso que ela simboliza.

O Brasil enfrenta uma epidemia silenciosa de sofrimento psíquico. Pessoas adoecem no silêncio, na vergonha, no luto não elaborado. Rir do sintoma é fácil. Escutá-lo exige maturidade emocional, ética e política.

Vi, infelizmente, várias postagens de médicos zombando da situação. Nestas horas me pergunto do que valeram as tantas aulas de ética médica e habilidades de comunicação com o paciente que ofereci aos meus alunos, hoje colegas de profissão.

Como nos ensinou Freud, “a civilização é, em grande parte, resultado da repressão das pulsões”. Mas quando essas pulsões não encontram espaço simbólico para serem elaboradas, elas retornam, não em forma de palavra, mas de sintoma.

Os bebês reborn são apenas o espelho. O reflexo ampliado do que não está sendo dito. As pessoas estão desesperadas por afeto, escuta e sentido. O bebê reborn é, muitas vezes, essa tentativa precária de civilizar a dor que não foi escutada. Um modo silencioso, e até esteticamente aceitável, de gritar.

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